14/02/2012
Rio de Janeiro, RJ
Nervoso pela estreia na televisão aberta com o 'Corujão', medalhista olímpico fala sobre aposentadoria, momento do judô brasileiro, Reação, MMA, Fiorella...
Semana corrida. Difícil encontrar um horário na agenda de Flavio Canto. Treino, reunião, gravação, aniversário da Fiorella... A entrevista ficou para a manhã de sexta-feira. Mas não uma sexta qualquer. Teria pela frente a primeira gravação do "Corujão do Esporte" para ir ao ar na madrugada de sábado. Além disso, era o dia de comemorar os 24 anos de sua mulher.
Toda essa correria porque, no domingo passado, ele anunciou, no "Esporte Espetacular", que estava se aposentando, após 22 anos de judô, 17 deles dedicados à seleção brasileira. O novo desafio na carreira seria longe dos tatames, perto das câmeras e holofotes, como apresentador. Mas aposentado aos 36 anos? Ele mesmo reconhece que ainda não se acostumou com a ideia.
- Soa estranho pra caramba - brincou.
Medalhista de bronze nos Jogos de Atenas-2004, Flavio abriu a porta de sua casa na Gávea, Zona Sul do Rio, se desculpando. Ele havia pedido que a equipe esperasse só um pouquinho. Estava preparando uma cesta de café da manhã surpresa para cantar parabéns para a companheira, a atriz e modelo Fiorella Mattheis.
O gato do casal, Madox, acompanhou o bate-papo desde o início, sem dar trégua. De certa forma, o felino parecia ajudar a diminuir o nervosismo do mais novo apresentador naquele dia tão importante. Depois de acomodar os convidados e tomar um banho a jato, Flavio sentou para a entrevista e começou a falar. Quase duas horas de conversa e pose para fotos, só interrompida com a chegada de Fiorella, que recebeu os parabéns e decretou o futuro do namorado na TV:
- Tenho certeza que ele vai dar certo.
O "Corujão" não será a primeira experiência de Flavio na mídia. Em 2005 ele teve a oportunidade de atuar como comentarista de TV na transmissão do Mundial de Judô. Depois foi convidado para apresentar o programa "Sensei", no SporTV. Agora, um novo desafio: o comando de uma atração na TV aberta. Apesar de faixa preta, ele não se ilude e sabe que enfrentará outro adversário: as críticas.
- Tenho total consciência de que chego como faixa branca na televisão. Mas já estou me preparando para aprender com as críticas que virão - disse.
Flavio falou sobre tudo: carreira, lesões, conquistas, felicidades, tristezas, MMA, legado, momento do judô brasileiro, chances do Brasil em Londres-2012, amigo Tande, projetos e do seu xodó, o Instituto Reação, seu projeto social que atende mais de 1.200 crianças e jovens carentes no Rio de Janeiro.
GLOBOESPORTE.COM: Com quantos anos você descobriu o judô?
FLAVIO CANTO: Eu comecei o judô com 14, seis meses depois de o Aurélio Miguel ser campeão olímpico (1988). Até então eu fazia natação e era um atleta mediano da equipe do Flamengo. Eu era, dos piores, o melhor. Sempre gostei da ideia de ser atleta. Mais novo eu queria ser super-herói, quando eu vi que não podia ser resolvi ser um herói de carne e osso. Quando fiz a primeira aula de judô, me apaixonei. Como comecei tarde, sempre treinei o dobro de todo mundo. Fiz isso durante anos e anos e nunca vi ninguém treinar mais do que eu, até porque nunca me considerei um cara talentoso. Depois cheguei na seleção muito rápido, com 19 já estava na principal e ainda era júnior.
Além da natação, tentou outros esportes?
Surfe. Surfar tento até hoje. Ando sempre com a prancha no banco de trás do carro na expectativa de um dia ter tempo e onda para poder surfar. Surfo legal, mas não para competir.
Qual foi o melhor momento da sua carreira?
Meus melhores anos em termos de resultado foram 2006 e 2007. O ranking naquela época ainda era extraoficial, mas fiquei praticamente esses dois anos como primeiro do mundo. Em 2006, ganhei quase tudo, até o prêmio do COB. Já 2007 foi um ano que começou muito bem, mas terminou muito mal. Foi quando tive a lesão nos Jogos Pan-Americanos. Para mim foi muito triste, tinha o Mundial do Rio e eu ia disputar com o Tiago (Camilo). Acabei não indo para o Mundial, ele foi e ganhou todo mundo de ippon.
Mas e o bronze olímpico em 2004?
As Olimpíadas de 2004 são minha melhor recordação. Foi o momento que mais me marcou no judô e até na minha vida, porque meu pai teve um enfarte dois meses antes das Olimpíadas e quase morreu. Foi uma experiência muito forte, eu só pensava nos Jogos e de repente quase perdi o cara mais importante da minha vida. Isso acabou me ajudando de certa forma, eu estava muito leve. E o meu pai acabou se recuperando e indo para Atenas me ver lutar.
Você é considerado o melhor de todos os tempos na luta no chão, mas recebeu críticas por misturar o jiu-jítsu com o judô. Hoje acha que contribuiu para a evolução do judô brasileiro?
Acho que sim. Meu estilo sempre foi muito particular, como o do João Derly, por exemplo. E o Brasil tem muita influência do judô japonês, tradicional, como o do Tiago Camilo, Leandro Guilheiro... Eu segui uma linha um pouco mais alternativa, e o que é diferente às vezes as pessoas não respeitam tanto. Já vi gente falando que o João não é tão técnico, isso quando ele era bicampeão mundial. Estilo bom é o que derruba e ganha luta. Acho que isso foi mudando aos poucos, e nesse sentido eu contribuí para abrir mais a cabeça do judô brasileiro. Na parte de chão, acho que tenho muito a contribuir ainda.
Apesar da tristeza de ter ficado fora de Sydney em 2000, ali começou a nascer uma nova paixão: o Instituto Reação.
Acho que o Reação nasceu com a minha história. Nasci na Inglaterra, morei nos EUA, viajei o mundo com o judô e sempre tive vida de nômade. Isso me deu um olhar da cidade diferente dos meus amigos. Desde os 19 comecei a me envolver em ações pontuais, mas eu precisava de alguma coisa de mais impacto. Em 2010 descobri que o mundo não acabaria se eu ficasse fora das Olimpíadas. Foi uma perda muita grande, mas eu sobreviveria. Fui para ser reserva, e quando voltei ao Brasil fui dar aula de judô na Rocinha e vi que aquilo, de alguma maneira, transformava a garotada. O projeto terminou, e acabei ficando sozinho. Então juntei uns amigos e formamos o Reação, o nome que significava um espaço onde as pessoas pudessem reagir, transformar o mundo.
Como está o projeto hoje?
Estamos com 1.200 alunos em cinco polos (Rocinha, Pequena Cruzada, Tubiacanga e Cidade de Deus I e II). O projeto foi crescendo de uns anos para cá e não é só judô, tem o programa de educação. Trabalhamos no judô uma escola de valores, e, dentro da educação, uma escola de competências. O objetivo é desenvolver a garotada para descobrir seu potencial.
Como se sente vendo a Rafaela Silva, fruto do Reação, sendo campeã mundial júnior e vice-campeã mundial adulta?
Ela representa muito bem essa virtude de acreditar no improvável, seguir um sonho e conquistar. Sou muito chato com a Rafaela, cobro muito e sou exigente demais. Tenho uma preocupação muito grande com o pós-carreira, a importância da formação acadêmica. O atleta acaba tendo uma visão infinita da sua carreira. A gente só percebe que o esporte um dia acaba quando vai ficando velho. Ela e a irmã, a Raquel, foram os primeiros exemplos de sucesso no esporte depois de mim. E essas referências internas funcionam bem melhor.
Vamos começar a falar da aposentadoria. Você deixa o tatame com a certeza de que sua categoria está bem representada?
O Leandro (Guilheiro) está em uma fase exuberante e tem tudo para conseguir a terceira medalha olímpica da carreira dele e possivelmente a medalha de ouro. Ele vai como um dos grandes favoritos. O Leandro tem um estilo de judô muito seguro, dificilmente perde. Ele está mais maduro, a decisão de mudar de categoria foi muito boa, defende bem, movimenta e muda de pegada como poucos. O Brasil na minha categoria está muito bem representado.
E o judô brasileiro em geral?
O Brasil está em sua melhor fase disparado, nunca tivemos uma equipe tão forte. O grande trunfo é o judô feminino, com um crescimento incrível, quem sabe até mais forte que a masculina na perspectiva de medalhas. E uma vantagem das meninas é que elas são muito jovens: a Rafaela está com 19 anos, a Mayra com 20... O masculino tem uma equipe homogênea e forte.
Quais são as suas apostas para as Olimpíadas de Londres?
É sempre difícil prever isso. Mas dentro do retrospecto do time brasileiro, temos alguns atletas que dificilmente não vão ganhar medalha, como a Mayra e o Leandro. Outros também têm grandes chances, como a Sarah (Menezes, -48kg), a Rafaela (Silva, -57kg), o Rafaelzão (Rafael Silva, +100kg), quem for do peso médio entre o Hugo (Pessanha, -90kg) e o Tiago (Camilo, -90kg). Vamos ter de quatro a cinco medalhas no judô em Londres.
O que acha da explosão do MMA? Lutaria?
Já me chamaram, tinha uma possibilidade de fazer algumas lutas no Pride em 2004 ou 2005. Eu agradeci e disse que não tinha muita coisa a ver comigo, minha praia é o judô. Como boa parte dos brasileiros, todo mundo está conhecendo e aprendendo a respeitar o esporte, muito por conta do UFC, que mudou um pouco os paradigmas da luta. A nova geração assiste, e a antiga ainda tem um certo preconceito do velho vale-tudo. Hoje a gente vê que mudou muita coisa, existem regras, tem uma comissão atlética. É um esporte que veio para ficar, para substituir o boxe. Ainda acho que pode mudar uma regra ou outra para ficar menos violento. Não gosto da cotovelada, por exemplo. Mas tenho vários amigos e torço para os brasileiros. Cada um tem uma história de vida muito bacana.
Como amadureceu a ideia da aposentadoria? A palavra não soa estranha?
Soa estranha pra caramba. Mas foi todo um processo. Eu me perguntava se eu já tinha aprendido tudo o que poderia aprender com o judô. Vi que na parte competitiva não tinha mais tanto o que vivenciar. Já vivi grandes alegrias, tristezas, lesões... E 2010 foi um ano que eu curti bastante, acho que foi minha verdadeira despedida. Aí teve a lesão, o Reação cresceu muito, e comecei a sentir falta de não estar no dia a dia. Era hora de mudar de emoção.
Mas não vai largar o judô totalmente...
Continuo no judô, primeiro com o Reação, que é uma fábrica de transformação. Vou ser muito mais útil para o judô assim, produzindo e revelando atletas, como a Rafaela. E estou estudando com a Confederação (CBJ) treinamentos em que eu participe como professor na parte de solo. Acho que a gente ainda treina pouco chão e posso contribuir com isso. Quero ajudar o pessoal a ter mais eficiência no chão.
Agora você é apresentador. Como se sente na frente das câmeras?
Minha história na TV começou em 2005 comentando a medalha de ouro do Joãozinho (João Derly) no Mundial. Gostei muito e comecei a ser chamado. Convidaram-me para fazer o "Sensei SporTV" e fui me empolgando com televisão. De junho para cá, me perguntaram se eu tinha interesse em fazer um piloto para o "Corujão do Esporte", já que o Tande estava com muita dificuldade de conciliar o "Esporte Espetacular" com o "Corujão". Aí começou o namoro. Em dezembro, eles me chamaram dizendo que começaria em fevereiro e perguntaram: "Você topa?". Conversei com toda a minha família e achei que era o momento certo. Mas ainda fico um pouco nervoso, sim.
Como é substituir o Tande, que também é um ex-atleta?
O Tande foi um cara fundamental nesse processo. Ele passou por tudo que estou passando. É minha grande referência, como atleta e agora na televisão. O Tande conversou muito comigo, desde o início, e é um cara muito especial.
Está preparado para receber críticas?
Tenho total consciência que chego como faixa branca na televisão. Assim como duvidaram de mim na primeira seletiva para a seleção, em 95, precisei de um tempo para as pessoas me respeitarem. Mas acho que o atleta é sempre muito respeitado, e agora na TV é um meio termo de artista e atleta.
Fiorella, você apresentou o "Vídeo Show" por dois anos. Deu alguma dica para ele?
Na verdade, o Flavio é muito crítico com ele mesmo. Ele fica o tempo todo pedindo para eu assistir e ficar criticando. Mas ele é muito inteligente. Estuda, pega as coisas muito rápido, é carismático, passa uma energia muito boa, e a televisão passa isso para quem está assistindo. Não tenho dúvida de que vai dar certo.
Flavio, para finalizar, com a Fiorella do seu lado. Qual foi sua maior conquista: a medalha olímpica, o Reação ou a Fiorella?
O Reação. Sem o instituto eu não conheceria a Fiorella (risos). Mas o Reação é uma das coisas mais bonitas, me sinto especial, um ser humano no seu sentido pleno.
Por Raphael Andriolo
Divulgação JUDOinforme.com
Prof. Rocha / Jornalista
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